Vamos por ancho camino
No dia 11 de setembro de 1973, há 46 anos, portanto, o golpe empresarial-militar que teve o general Pinochet como principal figura visível assassinou uma importante experiência de construção do poder popular no Chile. Uma experiência que passava pelo governo da Unidade Popular, com o presidente Allende, mas que ia muito além dos limites (que se mostraram realmente limites) da tentativa de se chegar ao socialismo pela via eleitoral da democracia burguesa.
O Victor Jara, cantor popular e lutador social de grande destaque, é talvez o personagem mais simbólico de todo um esforço de parte do povo chileno pra que a mulher e o homem comuns, sem posses, pudessem decidir os rumos do país, das suas vidas. Pra que as crianças da classe trabalhadora tivessem como horizonte a felicidade de um dia-a-dia em que a poesia seria um trabalho e o trabalho seria uma poesia. Pra que as crianças pobres fossem o sol desse belo horizonte, cultivado a cada dia. O pão de cada dia feito com o fermento da luta popular. O pão de cada dia recheado de consciência de classe. O violão do Victor Jara era o coração do sonho de um socialismo descolonizado no Chile, o coração do sonho da revolução chilena, capaz de conjugar os amores pessoais e os amores sociais, os mais íntimos e os mais públicos, a mais calma das contemplações e o mais apaixonado dos entusiasmos. O eco do povo na voz do povo. Ao dedilhar o seu violão, o Victor Jara acariciava cada companheiro que se irmanava nesse sonho e cantava vamos de mãos dadas, com os dedos entrelaçados, com as almas abraçadas.
Tapete de sangue pros dólares
Logo no início da ditadura, em que o sangue dos trabalhadores assassinados era o tapete vermelho pro grande capital transnacional, o Victor Jara foi torturado e assassinado. Seus algozes diretos, soldados, e seus algozes (in)diretos, executivos do Estado e de grandes empresas estadunidenses e chilenas, entre outras, esmagaram e cortaram os dedos dele, com o ódio que tinham dele (en)cantar o povão chileno com o seu violão e as suas canções. No filme de animação 5 doigts pour el pueblo, feito por Bruce Krebs (https://vimeo.com/28539537), esse episódio terrível é sintetizado de forma bem expressiva.
Nos três anos de governo, o Allende (e toda a sua equipe e os setores populares que o apoiavam) conseguiu, entre outras medidas, nacionalizar (estatizar) parte da grande indústria, notadamente da grande indústria mineradora do cobre, uma das principais do país. Se avançou na democratização dessas empresas e até, em algum grau, se chegou a um controle da produção por parte dos trabalhadores. Isso é algo de profunda importância, ainda mais que o mundo do trabalho dominado pelos capitalistas é um dos espaços mais ditatoriais e mais naturalizadamente ditatoriais na sociedade. Tudo isso foi destruído com o golpe empresarial-militar de 11 de setembro de 1973, da dupla Augusto Pinochet-Henry Kissinger (secretário de Estado dos Estados Unidos na época, ou seja, um dos ministros das relações exteriores mais poderosos do mundo). Foi mais uma cartada especialmente sangrenta capitaneada pelos EUA na Guerra Fria. Foi uma das guerras quentes na Guerra Fria.
No dia do golpe, a força aérea chilena bombardeou o palácio presidencial de La Moneda, no centro da capital Santiago. O presidente Salvador Allende resistiu. No seu último discurso (https://www.youtube.com/watch?v=jAGkIhdJ1kM), difundido pela rádio Magallanes, explicou bem o que estava acontecendo, sublinhando que se tratava de um golpe do imperialismo e da burguesia, e expressou esperança de que o povo trabalhador chileno conseguiria, ainda que após muito sofrimento, retomar o caminho do poder popular. Durante o seu governo e desde então, houve bastante polêmica sobre a melhor forma de derrotar o capitalismo e o golpe. Alguns setores defendiam que era necessário o povo trabalhador ser também o povo em armas e que não agir nesse sentido seria uma ingenuidade, já que o imperialismo e a burguesia utilizariam as armas pra derrubar o governo e destruir a luta popular. Esse debate é importante. De qualquer forma, o Allende saiu morto de La Moneda e manteve a dignidade até o final.
Desde os primeiros dias da ditadura, a perseguição aos opositores foi feroz. Os requintes de crueldade, como torturas com ratos colocados dentro das vaginas de opositoras presas e crianças sendo torturadas fisicamente e sendo forçadas a ver os pais sendo torturados, foram muito recorrentes e não sensibilizaram os ultra-liberais em termos econômicos, como os Chicago Boys, economistas forma(ta)dos nos Estados Unidos, que aproveitaram a tropa de choque (elétrico) pinochetista pra aplicar o neoliberalismo no Chile, que se tornou um laboratório-campo de concentração onde prepararam a guerra ultra-liberal contra os povos do mundo inteiro, de forma especialmente cruel nos países da periferia do sistema capitalista mundial. A privatização foi aplicada como uma perversa água-benta ultra-liberal. Em praticamente tudo. Inclusive, na saúde, na previdência (que deixou de ser social) e na educação. Veio acompanhada de muitas demissões e do favorecimento ao capital estrangeiro, especialmente o capital financeiro. A economia chilena foi totalmente atrelada ao exterior, pra favorecer os países centrais do capitalismo e pra ser dependente deles. A economia chilena foi transformada num soldado faz-tudo das grandes transnacionais e do núcleo duro dos Estados das suas sedes. Num boy dos Chicago Boys. Durante um período, muito dinheiro chegou no Chile, vindo dos países centrais do sistema, e, em parte, propiciou o que foi embalado pelos seus propagandistas com a marca "milagre econômico". Mas esse "milagre" era um bombom recheado com o veneno do pesadelo da dependência maior em relação a capitais externos e à flutuação do preço de matérias-primas, com destaque pro cobre, no mercado mundial. O Chile se tornou um país muito endividado e sua economia entrou em crise ainda durante a ditadura pinochetista. E, ainda que com momentos de recuperação desde então, sempre mantendo o neoliberalismo, a fragilidade da dependência e a dilaceração do tecido social, com o individualismo sendo muito estimulado, permanecem, aumentando no país los olvidados, que o sistema (não) vê como loosers, como efeito colateral a ser varrido do mapa. É o caso de muitos idosos, que não conseguem parar de trabalhar, porque as aposentadorias que recebem dos sistema privado são muito baixas, como está explicado no texto a seguir: https://revistaforum.com.br/global/chile-capitalizacao-da-previdencia-faz-idosos-morrerem-trabalhando-e-suicidio-bater-recorde/
Precisamos derrotar o Pinochet das finanças
O atual governo brasileiro é fã da ditadura pinochetista. O presidente-fantoche Bolsonaro já declarou sua admiração e um dos principais representantes do (neo)pinochetismo no Chile, José Antonio Kast, veio ao Brasil ajudar a campanha bolsonarista (https://www.brasildefato.com.br/2018/10/10/o-neopinochetismo-com-bolsonaro/). O presidente de fato do Brasil, o ministro da economia Paulo Guedes, que costuma fazer o machão Bolsonaro botar o rabinho entre as pernas quando este faz alguma declaração que contrarie em algum grau o ultra-liberalismo, ajudou a ditadura pinochetista no Chile, nos anos 1980. Ele é ao mesmo tempo um preposto das grandes transnacionais, com ênfase nas dos países centrais do capitalismo atlantista, e um gângster que manobra pra maximizar os lucros das suas próprias empresas. Também é admirador do Pinochet. Chicago Boy, o Paulo Guedes já disse que quer privatizar tudo no Brasil e vem colocando isso em prática. Esse Pinochet das finanças é um dos generais do plano de privatização mais completa da jóia da coroa do patrimônio estatal e potencialmente público brasileiro que é a Petrobras. Ele não apenas está, com a mão-de-ferro (in)visível do mercado, continuando, num ritmo ainda mais acelerado, a privatização de muitas partes da empresa e da sua lógica de funcionamento, mas também está, também de modo muito acelerado, atuando pra que a empresa seja completamente privatizada. Ele colocou um comparsa Chicago Boy, o Roberto Castello Branco, na presidência da Petrobras, justamente pra pisar ainda mais no acelerador privatista, passando como um tanque de guerra por cima de quem resiste. Ambos, como seus demais comparsas da Escola de Chicago e suas "filiais" no Brasil, muitos dos quais ocupam cada vez mais espaços na Petrobras, mantém o discurso tecnocrático como uma varinha mágica privatista, que transformam num cacetete com o mesmo objetivo nos momentos em que mesmo o discurso tecnocrático é um disfarce insuficiente. Manejam as linhas dos gráficos que apresentam como neutros como se segurassem chicotes contra os trabalhadores "rebeldes". Torturam psicologicamente muitos trabalhadores, enquanto preparam demissão em massa. Retiram a empresa de várias regiões do país, desarticulando as esconomias locais. São uma mostra de que a tecnocracia, tanto na ditadura pinochetista no Chile quanto no pinochetismo made in Brazil dos Mercados Unidos que é o bolsonarismo (https://midiaindependente.org/?q=node/615), ao mesmo tempo em que sonha com o dia em que vai conseguir que os povos, que vêem como pixels de códigos de barra, sejam governados por um software, se junta ao discurso do "minha opinião é que importa e dane-se a sua" aparentemente (só aparentemente) tão contraditório com o do mito da neutralidade da técnica. São duas faces da mesma moeda ditatorial, da ditadura da moeda.
O atual governo e a atual hierarquia da Petrobras não inaguraram essa política, que utiliza diversas camuflagens. Ela já vem sendo praticada faz tempo, como escrevi no texto https://www.facebook.com/inimigosdorei.petroleiros/posts/1838527749703907 , também em torno da alusão ao pinochetismo. Mas, ao pisar ainda mais fundo no acelerador privatista, o atual governo piora muito o cenário.
É urgente que os petroleiros e o conjunto do povo trabalhador lutem de forma mais direta e massiva contra isso. Precisamos nos inspirar no Victor Jara e irmos por ancho camino (https://www.youtube.com/watch?v=pzOslKLzojc). Estudarmos a melhor estratégia e as táticas mais adequadas é muito importante, mas, como diria o poeta espanhol Antonio Machado, "caminante, no hay camino, se hace camino al caminar". Caminhemos.
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.