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Sobre ação direta em tempos de pandemia

Sobre ação direta em tempos de pandemia

Junho 05, 2020 - 18:51
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Há uns anos atrás volta e meia no círculo da militância a gente via algumas pessoas ligadas à esquerda institucional (ou partidária) fazendo críticas à construção da pauta #NósPorNós pela rapaziada que constrói o movimento de favelas há muito tempo.

Também vi um povo de partido sempre criticar diversos trabalhos comunitários e trabalhos de base que existem e resistem há tempos, quase chamando de um mero “assistencialismo”.

É lógico que essa ideia não é generalizada e corresponde a uma galera extremamente viciada nas instituições, que ainda crê que vivemos numa democracia, achando que “lutar por dentro” do Estado, cultivando a fantasia de “ocupar o Estado” terá efeitos transformadores dentro do sistema capitalista.

Tem uma galera firme e de luta em partidos que não se limita a essa visão tosca, reformista e tacanha de cálculos eleitorais de dois em dois anos e só.

Há ainda outra crítica recorrente que continuamos a assistir por parte dessa mesma ala reformista da esquerda partidária, mas também de toda a grande imprensa, movimentos de direita e liberais num geral a respeito do que de forma bem simplista chamam de “ação direta”. Mas será que quem critica sabe de fato o que é ação direta?

A noção e prática de ações diretas partem do agir político de forma coletiva, que busca uma intervenção sem intermediários de governo ou instituições. Numa ação direta o povo age de forma consciente e sem delegar esse direito de se manifestar. A população se auto-organiza politicamente. A intervenção é direta e não a partir de pedidos de petição online para parlamentares criarem uma emenda a ser votada na plenária e debater entre partidos da situação e oposição de um governo. Ação direta é reforçar que o povo pode sim agir politicamente com as próprias mãos, todos os dias, independente de eleições e para além dessa lógica do Estado…

E aí vem esse momento caótico da pandemia de COVID-19, que se tornou extremamente didático. Relacionado à conjuntura pandêmica cito dois exemplos pontuais para entendermos a conjuntura e o tema do presente texto: a chacina no baile funk em Paraisópolis em Dezembro de 2019 e a chacina que ocorreu em Maio de 2020 no Complexo do Alemão. As matanças cometidas e protagonizados pela Polícia Militar em SP e no RJ por uma ação conjunta das polícias civil e militar.

A luta pela vida sempre esteve além e contra as instituições do Estado nas periferias, com protagonismo da população pobre e marginalizada socialmente. Isso em todos os momentos históricos. E nessa conjuntura de pandemia não está sendo diferente.

A população de Paraisópolis por meio da auto-organização vem conseguindo combater o avanço do Coronavírus, com divisão de tarefas por regiões da favela, comissões para fazer mutirão e outras atividades, esclarecimento à população, fiscalizar as ruas e becos, e dialogar com moradores e moradoras a respeito desse momento delicado.

Nas favelas do RJ vários moradores e moradoras, além de coletivos de favelas também estão fazendo um trabalho exemplar de combate à pandemia. O trabalho coletivo, comunitário e de base realizados na Maré, Alemão, Manguinhos, Providência, Acari, Dona Marta, Rocinha, Cidade de Deus, Formiga, dentre tantas outras localidades, não surgiram do nada e nem somente agora no período de pandemia.

Podemos afirmar que os exemplos ditos acima, de autogestão do território para combater a pandemia nas periferias, são práticas de ação direta que refutam todos e quaisquer mitos sobre ação direta como “somente quebra-quebra” ou ainda “ocupar um lugar só pra marcar posição e mais nada”, como também ouvimos muitas vezes por aí.

Existe uma falácia em dizer que o Estado não está nesses territórios periféricos. Precisamos dizer e mostrar que acontece justamente o contrário, pois o Estado desde sempre esteve nas favelas, só que as ações do Estado de forma permanente sempre foram da mesma forma: para assassinar e reprimir a população (vide o exemplo de Paraisópolis e Alemão, já citados).

É nessas horas que recorrer e aprender com o #NósPorNós é fundamental. Entender a máxima de que “só o povo salva o povo” e só a solidariedade de classe e com os de baixo, ombro a ombro, a partir da construção de ajuda mútua e autogestão, vai nos livrar de qualquer crise ou avanço do capital e da repressão estatal.

Outros dois exemplos que valem citar dessas ações de ajuda mútua e ação direta, e da repressão do Estado como contraponto recorrente, foram os casos que aconteceram nos dias 20 de Maio na Cidade de Deus e dia 21 de Maio no Morro da Providência, Rio de Janeiro.

No momento que estavam acontecendo ações de solidariedade e doações de cestas básicas, a polícia fazia operações e de forma truculenta matou os jovens João Vitor na Cidade de Deus e Rodrigo Cerqueira na Providência. Este último era estudante da rede pública e estava a caminho de buscar uma cesta básica para sua família que assim como milhares outras estão passando por uma extrema necessidade nesse período de pandemia.

É importante dizer que há sim uma crise sanitária e humanitária, mas o Estado e suas instituições seguem funcionando como nunca. Favorecendo banqueiros, grandes empresários e dando migalhas à classe trabalhadora ou reforçando a repressão. A saída não é uma novidade, pelo contrário.

Será a partir dessa construção coletiva, se juntar, se inteirar, buscarmos ser solidários a esses projetos, divulgar iniciativas que buscam a sobrevivência da população no meio da pandemia é o que temos a fazer.

Lembrando que tais iniciativas na maioria dos casos não surgiram agora, – algumas já existem há mais de uma década, por exemplo – e sempre fizeram diferença, mas agora estão sendo visíveis aos olhos de quem só enxerga as eleições como uma saída viável de forma às vezes arrogante e outras vezes bem limitada mesmo.

Enquanto uns criticam o #NósPorNós e chamam ações políticas de solidariedade de mero “assistencialismo”, e estão focando suas atenções nas eleições de 2020 ou 2022, especulando se fulano vai ou não sair candidato pra perder como sempre e fazer coro à farsa plutocrática que vivemos há séculos, a luta pela vida a partir da autogestão, do apoio mútuo e da ação direta da classe trabalhadora pra conter o avanço do vírus segue e precisa de ajuda.

E sim, afirmo aqui que infelizmente uma coisa exclui a outra por conta da demanda de energia despendida num sistema que em nada vai ser alterado por dentro… ainda mais num momento crítico que vivemos, onde nessa “bagunça” institucional somos meros espectadores e ao lado de nós tem gente morrendo e sendo massacrada cotidianamente.

Guilherme Santana é professor do Pré Vestibular Machado de Assis no Morro da Providência, militante no campo da educação popular e libertária, é formado em Ciências Sociais pela UFRJ, mestre em educação pela UFRJ, doutorando em história comparada pela UFRJ, editor da Revista Estudos Libertários da UFRJ, é pesquisador do Observatório do Trabalho na América Latina da UFRJ (OTAL-UFRJ) e professor de sociologia da Rede Estadual de Educação do RJ.

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