As Organizações Sociais na privatização da saúde, ciência e tecnologia
O cenário político atual do contexto brasileiro está cada vez mais alarmante. De uns anos para cá, não faltam notícias preocupantes no quadro nacional. Para citar algumas, podemos falar de condução coercitiva de reitores de universidades federais[1], criminalização e banalização de movimentos sociais (notícias sobre arquitetura do prédio e sua história ganham mais importância do que as dezenas de vidas perdidas nessa tragédia e, para além disso, a necessária reorganização do espaço humano)[2], intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro, reformas educacionais idealizadas por bancos internacionais e indústrias petroleiras[3], desmonte e privatização de órgãos públicos[4] e, mais recentemente, uma possível audiência pública na câmara dos deputados, em Brasília, para apurar uma suposta perseguição a estudantes evangélicos nas universidades públicas (fato político construído na UFF com a parceria de neonazistas)[5]. Se o Brasil atual não é um país em estado de exceção, caminhando a passos largos ao totalitarismo, não sabemos o que é. Entretanto, devemos nos perguntar: de onde vem as motivações, incentivos e suporte (ideológicos, estruturais e financeiros) para esse desmonte do Estado brasileiro?
As justificativas para os cortes orçamentários e privatizações são variados (vão desde crise internacional até culpabilização de governos antecessores)[6] mas, ao passo que "gastos" públicos e direitos sociais são cortados, em nome de uma pseudo estabilidade econômica, bancos batem recorde de lucro e o governo concede 100% de desconto em multas sobre dívidas de ruralistas[7], portanto, onde está a crise? Ou melhor, para quê e quem é essa crise? Sobre o manto da neutralidade e do falso bem-estar social, a crise econômica possui cor, gênero e classe social.
No que diz respeito às políticas públicas de incentivo à ciência e tecnologia (C&T), vamos de mal a pior. Os cortes exorbitantes de verba do MCTIC vêm gerando diversos problemas nas instituições de C&T - [8] e [9], como exemplos -, inclusive sendo lançado um artigo na aclamada revista internacional Nature a esse respeito[10]. Na verdade os cortes nessa área já vêm sendo feito desde 2015, no governo Dilma, e hoje está chegando à faixa de redução de 15 trilhões de reais do orçamento de C&T e das universidades públicas[11]. As entidades de C&T e seus membros estão lutando contra esses cortes, mas sem muito sucesso, até o ponto de caírem nas disputas eleitorais pautadas nesse desmonte, como a candidatura de Tatiana Roque (um dos nomes importantes da campanha "Conhecimento sem Cortes"[12]) ou a tecnocracia de um "partido de cientistas"[13].
No caso particular do Rio de Janeiro, podemos destacar algumas situações de instituições que vêm sofrendo com esse desmonte. Recentemente, o Museu Nacional reduz drasticamente sua política de gratuidade, que antes era de uma hora todos os dias, e agora passará a ser de apenas um domingo por mês[14], além de aumentar o valor do ingresso. Por outro lado, o Museu de Astronomia e Ciências Afins (também no bairro de São Cristóvão), através de um processo eleitoral que não possuiu qualquer consulta pública à comunidade do museu, elegeu como diretora uma defensora das organizações sociais (OS)[15], que vem fazendo diversas mudanças no quadro profissional da instituição, com mudanças de cargo e demissões, que inclusive gerou uma moção da Associação Brasileira de Museus e Centros de Ciência (ABCMC)[15].
As OS surgiram a partir da Lei no 9.637, de 15 de maio de 1998[17], resultado do avanço de políticas neoliberais no Brasil, e são parte de uma política de privatizações do atual governo. O Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) é uma das 3 OS do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação (MCTIC). As outras são a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Laboratório Nacional de Luz Sincontron. Além dos problemas financeiros que o IMPA vem passando, que estavam obrigando o instituto a cortar serviços (demitir), como limpeza e segurança, bem mais da metade de seu corpo de pesquisadoras (em torno de 30 todo o corpo) é de profissionais que não passaram para a OS, ou seja, continuam como servidores públicos. Isso permite que o Instituto tenha uma folga de grana, porque esses salários são pagos pelo governo. Boa parte desses pesquisadores que são servidores já podem se aposentar ou completam o tempo de aposentadoria em no máximo 2 anos, e a reposição do quadro tem que ser feita por contratação direta da OS. Logo, em um orçamento baixo, como dar conta dessa despesa adicional? Por outro lado, as OS não são auto sustentáveis, normalmente, em matéria de orçamento. Dependem da transferência de recursos do governo, centralmente; recursos esses que reduziram pra todo mundo. Então qual é a "jogada" das OS? É feita a transferência do bem público para a gestao privada (uma empresa, uma ONG), sem licitação, e essa empresa terá a função de gerir aquela instituição com controle minimo. A relação do governo com ela é via um "contrato de gestão" com metas, ou seja, o governo transfere dinheiro para a empresa e cobra (em tese) metas. E a fiscalização do dinheiro público transferido? É feita por um conselho escolhido pela própria empresa (e governo). Um conselho de amigos. Isso, na lógica de power point da administração, desengessa a coisa publica, na medida em que as OS não respondem à maioria dos mecanismos de co ntrole do governo, os chamados controle a priori: regras pra licitar e contratar, por exemplo. Seus defensores dizem que a fiscalização é a posteriori: por esse Conselho ou pelos órgãos de governo, caso percebam irregularidades na gestão da verba pública, e que podem ser apontadas pelo Conselho de Amigos. É um modelo bresseriano de fiscalização a posteriori.
Ou seja, as OSs são organizações da sociedade civil que passam a gerenciar organizações públicas. Esse processo é chamado de publicização, que, diferente (em tese) da privatização, não transforma uma empresa estatal em privada, mas transforma "uma organização estatal em uma organização de direito privado, mas pública não estatal"[18]. Mas quanto dessa diferença entre os conceitos de privatização e publicização se reflete concretamente na prática? Em que nível a transformação de um órgão público em uma OS significa a privatização desse órgão? No caso da saúde - para um retrato do processo de expansão das OSs na saúde, entre 2009 e 2014, ver[19] -, as OSs vêm "como instrumento de combate às estruturas clientelistas e patrimonialistas do Estado brasileiro com a inserção de palavras-chave, como eficiência e eficácia, importadas dos modismos do management"[18]. Esses argumentos de eficácia e eficiência, no entanto, não condizem com a realidade. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em 2011, avaliou seis hospitais, sendo 3 deles administrados por OS e os outros 3 pela Administração Direta (isto é, pelo funcionalismo público), e o resultado foi que as unidades estatais além de serem comparativamente mais baratas, ainda tinha uma maior relação profissional-paciente, como uma menor taxa geral de mortalidade[20]. De que eficiência e eficácia estão falando, afinal? Além disso, entre 2006 e 2009 houve um aumento de mais de 114% nos custos das unidades do SUS geridas por OS, gerando um rombo acumulado de 147,18 milhões de reais aos cofres públicos, isso tudo somente em 2010[21].
Mas os problemas das OSs não se restringem ao mau uso do dinheiro público ou à falácia da eficiência e eficácia. Através da Lei Complementar nº 1.131, de 2010[22] as OSs de São Paulo, que, originalmente, só poderiam atender pacientes do SUS, a partir do dia 27 de dezembro de 2010, essas unidades seriam autorizadas a destinar 25% de suas vagas para planos de saúde e atendimentos privados pelo desembolso direto[18]. Felizmente o ministério público de São Paulo reagiu e essa Lei Complementar foi suspendida. Ainda assim, é uma clara indicação de como as OSs estão galgando seu caminho para engolir as instituições públicas. Esse foi apenas um exemplo de como usar recursos públicos para o bem de empresas privadas, como aquelas dos planos de saúde, nesse caso. Não por acaso, esse modelo de gestão hospitalar é o mais difundido em São Paulo - estado mais rico do Brasil, cuja capital hoje é administrada por um empresário -, e vem se expandindo para os demais estados e instituições públicas. Fazemos coro aos autores de[18], quando dizem que esse é o "mecanismo jurídico mais perfeito para a privatização do SUS", mas não só do SUS. Essa estratégia de privatização sutil deve ser fortemente combatida e denunciada.
↑[2]http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43963439
↑[3]https://www.todospelaeducacao.org.br/quem-somos/mantenedores-e-apoiadores/
↑[4]https://exame.abril.com.br/negocios/privatizacao-da-eletrobras-tem-de-av...
↑[5] http://www.jmnoticia.com.br/2018/05/14/universidade-federal-fluminense-p...
↑[6] FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. p. 22 - 39.
↑[7] https://g1.globo.com/politica/noticia/congresso-derruba-vetos-de-temer-e...
↑[8] https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/reducao-orcamentaria-p...
↑[9] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/27/ciencia/1511806311_065202.html
↑[10] https://www.nature.com/news/brazilian-scientists-reeling-as-federal-fund...
↑[11] https://conhecimentosemcortes.org.br/
↑[12] https://www.facebook.com/tatianaroque2018/photos/a.181601635908330.10737...
↑[13] https://www.tecmundo.com.br/ciencia/119460-cientistas-brasileiros-estuda...
↑[14] https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1822816788020526&id=15126594...
↑[15] No momento de apresentação das propostas das canditas a direção do MAST, a atual diretora defendeu publicamente a "redução da dependência do governo federal e sua abertura ao setor privado", nas suas palavras.
↑[16] http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/3-abcmc-divulga-mocao-pela-valo...
↑[17] https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/107122/lei-9637-98
↑[18] https://deivissonlopes.files.wordpress.com/2013/04/livro-anatomia-da-pri...
↑[19] https://www.scielosp.org/article/csp/2018.v34n1/e00194916/pt/
↑[20] Para uma análise mais aprofundada dos dados, conferir o Quadro 4, da página 123 de [18].
↑[21] http://www.viomundo.com.br/denuncias/hospitais-publicos-de-sp-gerenciado...
↑[22] https://governo-sp.jusbrasil.com.br/legislacao/1026360/lei-complementar-...
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